Estou afogado entre prédios.
E a natureza aprisionada entre anúncios
coloridos de amor, contas, tarot.
A catinga de urina nos postes e cantos
dos muros geram cores e caras.
No ponto de ônibus, vários olhares calados
no horizonte derretido.
Meu busão vem rastejando pela rua.
Ele para e o povo se afunila na sua porta.
Lá dentro, os semblantes gritam, e das testas pinga sangue.
E os olhos gulosos se cravam nas tetas da preta em transe, cansada.
Ela chora e ninguém ouve. Nem eu, que também choro, ouço.
Vejo um velho branco e baixo de cabeça chata e rosto fechado
tentando sem pudor encoxar uma menina mulata com roupa de escola.
Ela nota e se afasta, sem espanto. Atravessa o corredor entulhado
e se aloja no fundo com os demais moribundos.
Fico colado na catraca, travado. Para além dela, os gemidos surdos e queixas
encharcam a atmosfera escurecida. O ônibus se entope. O calor me envolve os sovacos
e o ar me escapa, como de costume.
“Mais um passinho no corredor, pessoal, por favor!”
berra o cobrador com sua voz rouca.
Sou empurrado, amassado. “Vai meu, passa aí”,
o homem atrás de mim. Passo o bilhete. Desponta o estalo metálico.
Fico ali grudado a uma senhora gorda, que me olha toda hora, sem brandura.
Um cotovelo espeta minhas costelas. Não me mexo.
O busão se move com um arranco que empurra mais em mim o cotovelo e eu me contorço.
Tento olhar pro fundo do corredor.
O homem branco e baixo de cabeça chata está lá, bem ao lado da garota que volta
da escola. Engulo seco e atiro os olhos pela janela, buscando
me perder até o fim da viagem, da semana, e, com sorte, da vida.
Douglas Santos Silva.
Maio/Novembro de 2017.
Pensar em formar um conto só com “O som que vem do morro”.
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Foto: Mídia NINJA. Imagem ilustrativa adicionada pelo corpo editorial.
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