6 meses sem Marielle Franco: Seu corpo, sua luta e sua memória

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Negra, mulher, bissexual, feminista, anticapitalista, cria da maré, estes são apenas alguns dos modos pelos quais Marielle Franco costumava se descrever. 

Desde muito cedo soube da brutalidade de viver em um dos países mais desiguais do mundo, conhecendo em sua carne e pele o significado da desigualdade. Após a dor da perda de uma amiga morta no contexto da guerra às drogas urbana e cotidiana no Rio de Janeiro, assim como em diversas outras metrópoles do Brasil, transformou seu luto em luta e passou a militar pelos direitos humanos. 

Nascida na última nação ocidental a abolir a escravidão de forma oficial, na falsa abolição de 1888, Marielle conhecia bem a realidade estrutural e histórica que gera o contexto no qual sua vida e morte estão incluídas; sabia que após ‘ libertada ’ a população negra foi forçada a manter-se na base da sociedade, sempre funcionando como força produtiva marginalizada para uma sociedade capitalista predadora. 

Escravista durante mais de 300 anos, fundada sob a sistemática exploração de seres humanos, responsável pelo translado forçado de mais de 4 milhões de pessoas de várias partes do continente africano, trazidas para alimentar o sistema capitalista baseado no plantio, primeiro de cana de açúcar e depois de café, a sociedade brasileira é racista enquanto princípio e é sustentada dentro de valores e relações sociais e econômicas que perpetuam a dupla lógica da servidão, onde subentende que os negros sempre são subordinados e realizam trabalhos braçais ou inferiores, e da objetificação/descartabilidade, onde por ser entendida como força de massas inferiores a população negra é considerada descartável e até mesmo passível de ser exterminada. 

Ainda neste panorama histórico, com a falsa abolição gerou-se o imbróglio da falsa igualdade, sustentado pela democracia excludente que se seguiu. Falsa igualdade a qual reiterada por discursos nacionais como o da democracia racial, o que literalmente implantou na mentalidade nacional a ideia de que não há racismo no Brasil e acabou primeiramente mascarando toda realidade social de extrema pobreza e desigualdade e em segundo lugar impedindo qualquer ação política de combate a esta, pois afinal a miscigenação das raças havia eliminado o racismo. 

Com esta perversidade discursiva, as estruturas predatórias mantiveram-se e o povo negro permaneceu marginalizado sem acesso a qualquer cidadania ou direitos. Mesmo após o estabelecimento de uma república representativa em 1988, tais bases estruturais da sociedade permaneceram firmes e inabaláveis, pois tal ‘democracia’, por via de pactos com as elites, mantinha as raízes da desigualdade, protegendo a estrutura produtiva, aumentando e expandindo o aparato de repressão e protegendo a concentração de renda e de terras, de modo que tal ‘democracia’ jamais foi real, nunca representando a igualdade de direitos. 

No seio desta sociedade monstruosa, explode o contexto da violência e da guerra urbana que Marielle passou a denunciar, isso graças a uma política de ‘combate’ às drogas e a expansão da repressão por meios militares, culminando nos atuais 60 mil assassinatos anuais, os quais 77% de pessoas negras, mostrando que a lógica do corpo que é eliminável e substituível persiste e que tal “guerra às drogas” na verdade é o extermínio da negritude e a criminalização da pobreza. Extermínio o qual ainda faz por vítima preferencial a juventude, matando um jovem negro a cada 23 minutos, totalizando 25 mil adolescentes mortos anualmente.

Por estes e pelos direitos de todos aqueles que foram forçados a se calar Marielle lutava. Carregava em sua pele e em seu corpo, além da negritude, o fato de ser mulher num país patriarcal onde ocorrem 500 mil estupros por ano e que lidera todos os rankings de feminicídio, carregava também sua bissexualidade, na relação de amor que tinha com sua companheira Mônica, isso numa sociedade que mata uma pessoa LGBT a cada 23 horas, na qual o ódio e a violência gerada por este não é crime e onde a ainda se discute “cura gay”. 

Em suma, em sua pele, carne e alma, Marielle fazia-se a plenitude de seu corpo e era a síntese de todas as lutas, entendendo a natureza sistêmica das opressões fundamentadas no capitalismo, fazendo-se uma lutadora anticapitalista e passando a representar todos aqueles de cuja voz foi negada e para os quais a democracia apresentava-se apenas como um espectro pálido e incompleto; era a voz daqueles que não tinham nada a perder, para os quais restava apenas a luta cotidiana com a morte ou libertação. 

Em sua luta Marielle denunciava as ações do estado e seu aparato militarizado que assassinava qualquer um em seu caminho e justificava-se como auto de resistência, o modo pelo qual a negritude era usada na polícia para matar a si mesma e morrer num esquema maniqueísta que beneficia apenas os poderosos, ou ainda denunciava a ação das milícias que se aproveitam dessa guerra e impõe seu domínio sobre as comunidades sob a égide do medo. Marielle não poupava-se ainda de lutar contra o corrupto governo que derrubou com um golpe a frágil democracia incompleta e retirou de vez os poucos direitos conquistados,o qual ainda instaurou uma intervenção militar que de modo oficial declarou guerra contra a população, deu aval para a morte e para “mandatos de prisão coletivos”; intervenção esta que seria supervisionada por Marielle cuja função seria denunciar quaisquer violações dos direitos humanos que ocorressem. 

Apenas dois dias depois de denunciar a morte de dois jovens encontrados numa vala em uma comunidade onde a intervenção militar havia agido, Marielle foi assassinada junto de seu motorista Anderson; por sua militância Marielle foi morta, mas de seu sangue, como ela fez do sangue de sua amiga, surgiu luta ao invés de luto, seu sangue foi semente para todos os novos guerreiros que estão por vir empenhados em destruir esse sistema histórico que impera em nossa nação. Seu nome jamais será esquecido: Marielle! Presente! Agora e sempre! 

RUA - Juventude Anticapitalista.
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Autor O KULA

Texto enviado como colaboração ao corpo editorial do KULA. O CEUPES não se responsabiliza pelo conteúdo veiculado em suas postagens, à exceção dos editoriais assinados.

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